Mestre Eihei Dôgen Daioshô
Dogen Zenji, também conhecido como Dogen Kigen, Eihei Dogen ou Koso Joyo Daishi, foi um mestre Zen-Budista japonês nascido em Kyoto, fundador da escola Soto Zen.
Figura religiosa proeminente em seu tempo, bem como um filósofo importante. Dogen é muito conhecido pela sua coleção de textos, tendo como principal o "O verdadeiro Tesouro do Olho do Dharma" ou Shobogenzo, uma coleção de noventa e nove fascículos relacionados a prática budista e a iluminação.
Dogen nasceu em 1200, em Kyoto, então capital imperial do Japão. Filho de nobres, perdeu o pai aos três anos e a mãe aos oito. Dôgen ainda criança já evidenciava sua inteligência brilhante. Conta-se que, com quatro anos, lia poesia chinesa, e com nove anos leu uma tradução chinesa do Tratado sobre o Abhidharma (coleção de explicações de monges eruditos sobre ao que disse Budha).
O sofrimento que experimentou com a morte de seus pais, sem dúvida alguma imprimiu em sua mente sensível a consciência da transitoriedade da vida e o motivou a seguir a vida de monge.
Iniciado ao monasticismo budista com tenra idade, começou seu noviciado no Monte Hiei - tradição Tendai, na época o centro do budismo. Estudou profundamente, nos anos que se seguiram, as doutrinas Tendai do budismo. Ao dedicar-se com afinco ao estudo das escrituras budistas, defrontou-se com uma questão que para ele teve papel fundamental em suas escolhas:
" O budismo ensina que todos os seres humanos são dotados de natureza-buda. Se isto é verdade, por que o Buda ensina que é necessário praticar intensivamente?”
Esta questão foi originada, em grande parte, pelo conceito da escola Tendai de "iluminação original", que atesta que todos os seres humanos são iluminados por natureza e que, consequentemente,toda noção de se atingir a iluminação através da prática é fundamentalmente errônea.
Como Dogen não encontrou uma resposta para esta questão onde praticava, decidiu visitar outros mestres. Visitou o mestre Koin - abade da escola Tendai do Templo Onjoji. Koin lhe disse que, para encontrar uma resposta, Dogen deveria considerar ir estudar o zen na China.
Sua insatisfação pelas respostas que lhe foram dadas no Monte Hiei levou-o a procurar o mestre Eisai Zenji, da escola Rinzai (mestre Eisai Zenji foi quem trouxe da china para o Japão essa escola). A resposta de Eisai à questão de Dôgen foi:
"Apesar de possuirmos natureza-buda, não somos conscientes de sua existência".
Em outras palavras, os Budhas, precisamente porque são Budhas, não mais pensam em ter ou não uma natureza perfeita; somente os que vivem iludidos pensam nestes termos. Com estas palavras, Dôgen obteve uma realização interior que dissolveu aquela profunda dúvida. Há todos os indícios de que esta mudança aconteceu durante uma entrevista formal (dokusan) entre Eisai e Dôgen.
É preciso ter em mente que este problema preocupou Dôgen sem descanso, por algum tempo, e lhe bastaram as palavras de Eisai para levar sua mente a um estado inicial de iluminação.
Desde então, Dôgen iniciou o aprendizado de Koans sob o comando o mestre Eisai, que faleceu naquele ano, e teve como sucessor o abade Myôsen. Dogen, resolveu um considerável número de kôans e finalmente recebeu o inka (transmissão).
Apesar de toda esta habilidade, Dôgen ainda se sentia espiritualmente irrealizado e esta inquietação levou-o a empreender a viagem à China, então muito perigosa, em busca da completa pacificação da mente, tinha 24 anos.
Visitou todos os mosteiros famosos, praticando, sob a tutela de muitos mestres, mas não se satisfazia na sua busca de total libertação. Naquela época, a maior parte dos mestres de Chan baseavam seu treinamento no uso dos koans. Embora Dogen tenha estudado os koans assiduamente, ele ficou desencantado devido a grande ênfase dada a eles, e começou a se perguntar por que os sutras não
eram mais estudados.
Dogen chegou mesmo a recusar-se a receber a transmissão do Dharma de um mestre devido a este desencanto. Então, em 1225, ele decidiu retornar ao Japão, e em seu caminho de retorno voltou ao primeiro local de peregrinação na China para despedir-se de seu mestre Myozen.
Ao chegar ao famoso Mosteiro de T'ien-t'ung, soube que, com o falecimento do mestre Myozen, um outro mestre havia sido designado para o templo, chamava-se mestre Nyojo e, ao ser recebido pelo novo mestre, percebeu imediatamente que havia achado o mestre que por tanto tempo havia procurado. Ao mesmo tempo, o mestre Nyojo, também percebeu que acabava de achar o aluno que esperava havia muito tempo.
Dogen, tornou-se discípulo do mestre Nyojo, décimo-terceiro patriarca da escola chan (zen) Caodong. Nyojo era famoso por ter um estilo de Zen diferente dos outros mestres que Dogen havia até então visitado. Nyojo era um mestre muito rigoroso, o treinamento levado a cabo no mosteiro era muito rígido e difícil. Os monges dormiam pouco e se dedicavam durante muitas horas do dia à pratica da meditação sentada silenciosa (Zazen).
A principal instrução recebida por Dogen foi para que abandonasse corpo e mente ao caminho, significando um abandono completo de si mesmo e de toda e qualquer idéia de identidade ou pré-concepções acerca dos próprios ensinamentos, dedicando-se à prática central da meditação silenciosa com todo o seu ser.
"Você deve abandonar o corpo e a mente" lhe disse o mestre Nyojo. Abandonar o corpo e a mente é sentar em shikantaza. Ao praticar sinceramente o intenso sentar, os cinco desejos desaparecem e os cinco obstáculos são removidos. O abandono da compreensão intelectual através da absorção meditativa e do corpo através da disciplina foram decisivos para realizar o completo desapego.
Como o mestre Nyojo participava de todas as prática junto com os monges, revelava com sua forma de viver a realização dos ensinamentos oferecidos.
"... Você deve abandonar o corpo e a mente...
"
Diz-se que estas palavras foram proferidas pelo mestre Nyôjô no início de um período formal do zazen, de manhã cedo, quando fazia sua ronda de inspeção. Descobrindo um monge adormecido, Nyôjô repreendeu-o por sua fraqueza, batendo no monge com seu chinelo.
Então, dirigindo a palavra a todos os monges, continuou: "Vocês precisam exercitar-se com todas as forças, mesmo com o risco de suas vidas. Para atingir a iluminação perfeita é preciso que se libertem de todas as concepções do corpo e da mente".
Quando Dôgen ouviu esta última frase os olhos de sua mente repentinamente se abriram numa torrente de luz e de compreensão. Ele conseguiu a plena iluminação, a libertação do corpo e da mente através das palavras pronunciadas pelo abade Nyojo:
"Abandonar o corpo e a mente"
Mais tarde Dôgen foi ao quarto de Nyôjô, acendeu uma vareta de incenso (gesto cerimonial reservado em geral para ocasiões especiais), e prostrou-se diante de seu mestre na forma habitual.
"Por que está você acendendo uma vareta de incenso?" perguntou Nyôjô.
Seria desnecessário dizer que Nyôjô, um mestre completamente iluminado, que já havia recebido Dôgen muitas vezes em dokusan, portanto sabia que Dogen estava bem perto da iluminação, percebeu imediatamente, pelo andar de Dôgen, a qualidade de sua prostração e seu olhar cheio de compreensão, que havia obtido uma grande iluminação. Mas Nyôjô, sem dúvida alguma, queria ver como ele responderia a esta pergunta, aparentemente tao inocente, para avaliar a extensão do satori de Dôgen.
"Experimentei como se abandona o corpo e a mente", disse Dôgen.
Nyôjô exclamou satisfeito: "Você abandonou o corpo e a mente, o corpo e a mente foram abandonados".
Mas Dôgen protestou: "Não me dê sua sanção tão prontamente!"
"Não estou sancionando prontamente", disse Nyojo!
Dôgen continuou: "Mostre-me que não está sancionando prontamente"
Nyôjô disse: "Isto é corpo e mente abandonados.
Dôgen prostrou-se novamente diante de seu mestre com um gesto de respeito e gratidão e respondeu:
"Isto é o abandono abandonado", disse Nyôjô.
Sob o orientação de Nyojo, Dogen atingiu a libertação do corpo e da mente, nunca se esquecendo das palavras de seu mestre. Esta frase continuaria a ter grande importância durante a vida de Dogen e pode ser encontrada em vários textos escritos posteriormente, como por exemplo no famoso texto "Genjokoan":
"Estudar o Caminho é estudar a si próprio. Estudar a si próprio é esquecer-se de si próprio. Esquecer-se de si próprio é tornar-se iluminado por todas as coisas do universo. Ser iluminado por todas as coisas do universo é livrar-se do corpo e da mente, de si próprio e dos outros, neste momento, até mesmo os traços de iluminação são eliminados, vida com iluminação sem traços continua para sempre.”
No cerne da variação de Zen que Dogen ensinava existe uma série de conceitos-chave, enfatizados diversas vezes nos seus escritos. Todos estes conceitos, estão diretamente relacionados com o zazen, que Dogen considerava a verdadeira prática de todos os Budhas, conforme pode-se observar claramente na primeira sentença do manual de instruções de 1243 - Zazen-gi - Princípios universais do Zazen:
"Estudar Zen … é zazen"
Ao se referir ao zazen, Dogen na maioria das vezes está se referindo especificamente ao shikantaza, ou "apenas sentar-se", que é um tipo de meditação na qual senta-se "num estado totalmente alerta, livre de pensamentos, livre de dualidades, dirigido a nenhum objeto especial nem ligado a qualquer conteúdo em particular".
O conceito primário permeando a prática Zen de Dogen é a "unidade prática-iluminação". Este conceito é tão fundamental na escola de Dogen e, consequentemente, a escola Soto como um todo, que formou a base para o texto Shusho-gi, compilado em 1890 por Takiya Takusho do Eihei-ji e Azegami Baisen do Soji-ji como uma introdução ao enorme trabalho de Dogen, o Shobogenzo ("Tesouro do Olho do Dharma Verdadeiro").
Para Dogen, a prática de zazen e a experiência de iluminação eram a mesma coisa. Este ponto foi sucintamente indicado por Dogen no Fukan-Zazengi, o primeiro texto que escreveu ao retornar ao Japão:
"Praticar o caminho diligentemente é, por si só, iluminação. Não há qualquer diferença entre prática e iluminação ou entre zazen e vida diária" e "Zazen não é "meditação passo-a-passo". Ao invés disso é a prática simples e agradável de um Buda, a realização da Sabedoria do Buda. A verdade surge onde não há ilusões. Se você entender isso, você é completamente livre e o Dharma surgirá por si mesmo, e você estará livre de cansaço e confusão.”
Essa unidade entre prática e iluminação também foi enfatizada no texto Bendowa de 1231:
" Pensar que a prática e a iluminação não são a mesma coisa não é mais que um ponto de vista que está fora do Caminho. No Budismo, prática e iluminação são a mesma coisa. A prática diligente do Caminho de um iniciante é exatamente a totalidade da iluminação original. Por esta razão, ao passar a atitude essencial para a prática, ensina-se que não devemos esperar a iluminação fora da prática.”
"Eu me sentava em zazen dia e noite. Quando estava extremamente quente ou frio, muitos dos monges paravam de sentar por algum tempo, porque eles tinham medo de ficar doentes. Naquela época eu pensava: "Eu não estou doente, e se eu não me esforçar, terá sido inútil, tanto esforço em vir até a China. Morrer doente, mas dentro da prática, estará de acordo com o meu desejo inicial e por isso, continuei a sentar.” (Shobogenzo Zuimonki).
Muitos monges Japoneses que foram estudar e praticar na China voltavam para o Japão trazendo pilhas de sutras Budistas, mas Dogen Zenji voltou com as mãos vazias. A única coisa que Dogen Zenji trouxe de volta foi o ensinamento de Shikan-taza (somente sentar).
Em 1227, Dogen recebeu a transmissão do Dharma e inka de Nyojo. Dogen retornou ao Japão em 1228, para o templo Kennin-ji, onde havia treinado sob o comando do mestre Eisai da tradição Rinzai. Uma de suas primeiras ações ao voltar foi escrever o Fukan Zazengi, "Instruções Universais para a Prática do Zazen", um texto curto mostrando a importância e dando instruções para a prática do zazen.
Infelizmente, tensões começaram a surgir quando a comunidade Tendai tentou suprimir o pensamento zen do Dogen, devido a esta tensão, Dogen deixou Kyoto em 1230 e se estabeleceu num templo abandonado na hoje famosa cidade de Uji, ao sul de Kyoto.
Em 1233, Dogen fundou o pequeno templo Kannon-dori-in em Uji, mais tarde ele expandiu este templo, que passou a se chamar Kosho-horinji.
Como as tensões não diminuiam, Em 1243, Hatano Yoshishige ofereceu transferir a comunidade de Dogen para a província Echizen, situada mais ao norte de Kyoto. Dogen aceitou devido as dificuldades existentes com a comunidade Tendai e seus seguidores. Construiram um outro templo nesta localidade, Dogen chamou-o de Daibutsuji, templo do Grande Buda.
Em 1246, Dogen mudou o nome do templo de Daibutsuji para Eihei-ji, que continua até os dias de hoje como um dos dois templos chefe da escola Soto no Japão, sendo o outro o templo Sojiji, fundado por Keizan Jokin.
Dogen passou o resto de sua vida ensinando e escrevendo em Eiheiji, atualmente esse templo tem 750 anos, mais de 200 monges esforçam-se noite e dia na prática do Zen.
Em 1247, o novo regente, Tokiyori, convidou Dogen a vir a Kamakura ensiná-lo. Dogen fez a longa viagem e ordenou o regente como leigo, voltando a Eiheiji em 1248.
No outono de 1252 Dogen adoeceu. Ele transmitiu seu manto ao principal aprendiz, Koun Ejo, fazendo-o abade de Eiheiji. A convite de Hatano Yoshishige, Dogen foi a Kyoto em busca de uma cura para sua doença.
Em 1253, pouco depois de chegar a Kyoto, Dogen faleceu. Pouco antes de sua morte, ele havia escrito o poema:
Cinquenta e quatro anos iluminando os céus.
Um salto trêmulo arrebenta com bilhões de palavras.
Hah!
O corpo inteiro procura por nada.
Vivendo, eu mergulho nas Fontes Amarelas.
A obra prima de Dogen é o Shobogenzo, uma coletânea de discursos e escritos, reunidos em noventa e nove fascículos — possui tópicos que vão desde a prática monástica até a filosofia da linguagem, do ser, do tempo. Neste trabalho, como em sua vida, Dogen enfatiza a absoluta primazia do shikantaza e a inseparabilidade entre prática e iluminação.
Embora fosse tradição comum que escritos budistas fossem escritos em chinês, Dogen escrevia frequentemente em japonês, passando a essência do seu pensamento num estilo que era ao mesmo tempo conciso e inspirador. Um mestre no estilo, Dogen é notável não apenas pela sua prosa mas também por sua poesia (em estilo japonês waka e vários estilos chineses).
O uso da linguagem por Dogen era não convencional, "Os trabalhos filosóficos e poéticos de Dogen são caracterizados por um eforço contínuo para expressar o inexprimível através do aperfeiçoamento do discurso imperfeito pelo uso criativo do jogo de palavras, neologismos, e lírica, bem como pela redefinição de expressões tradicionais".
Desde 1930 que a obra de Dogen desperta interesse nos ocidentais, mas a primeira edição inglesa do shobogenzo só foi feita em 1958. A versão completa só foi editada em 1983, em quatro volumes, traduzidos por Gudo Wafu Nishijima e Chodo Cross. Atualmente desperta grande interesse em países da Europa e nos Estados Unidos, onde diversos centros dedicam-se a estudar seu pensamento. Alguns escritos foram editados como trabalhos independentes, muitos dos seus ensinamentos foram reunidos e transcritos por seu discípulo direto e sucessor Koun Ejo.
Escrito por Monge Taigen, Zendobrasil/RJ, Aluno de Coen Roshi.